A Rua São João cheira a biscoitos na maior parte do dia. Parte da história da via é contada pela fábrica que há 23 anos espalha o aroma pelas redondezas. “Só um segundo”, diz o funcionário Marcos Gonzales. Quando os portões se abrem e o porquê da nossa presença é explicado, o neto de Seu Zequinha, 75, dono da fábrica, levanta as sobrancelhas e retruca: “Oxe, aqui?! Eu achei que a rua mais alta de Salvador fosse em Brotas”.
A informação de que a rua, em Boca da Mata de Valéria, é o topo de Salvador é recebida com surpresa pelos moradores. A 117 metros de altitude, ela é o ponto mais alto da cidade - e supera em mais de 30 metros bairros como Brotas, Cabula ou Federação, recorrentemente considerados os bairros mais elevados, segundo dados da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado (Conder).
Na verdade, a maioria dos pontos mais altos da capital baiana está na região do Parque São Bartolomeu. Formada por chácaras, a Rua São João tem aparência de zona rural - chão de barro, pés de amêndoas, bananeiras, mangueiras e cavalos soltos. As cerca de dez casas, todas de apenas um pavimento, estão concentradas no início da rua e ladeadas por um eterno fluxo de água suja, fruto da ausência de rede de esgoto na via. A fábrica é o único estabelecimento comercial.
A sensação de viver no interior está também na boca dos moradores, que quando precisam de algo que não tem na região, dizem: “Vou para Salvador”. O ritmo de vida por ali poderia até ser definido como pacato, não fosse o medo da violência na região, que muitas vezes mantém os vizinhos dentro de casa.
HISTÓRIA
Sem saída, a rua é desconhecida até por geólogos que apostavam na Federação ou Cabula como pontos mais altos. Quando os carros chegam até ela, geralmente é por acidente. “Chega um pessoal às vezes aqui porque se perdeu. Quando chamam táxi então, é mais comum ainda”, conta o inspetor de fabricação, Félix Ferreira, 41 anos, donos de uma das chácaras e um dos moradores mais antigos.
Ele lembra que antes de ter as poucas casas, a rua era formada unicamente por chácaras, que ao longo do tempo foram vendidas ou invadidas. “Eu cresci nas chácaras, brincava com meus amigos debaixo do pé de amêndoas. Por elas, descia até a BR-324 sem medo”.
Segundo Ferreira, a área era procurada por ter terrenos mais baratos e ser afastada do centro. Hoje, a propriedade dele - a Chácara das Rosas - tem cerca de 700 m² e parte da família - mais de 15 pessoas - vive nela. Vizinho a Ferreira, vive a família de Evaldo dos Santos, 40, caseiro e morador da chácara número 6. Ele mora com a esposa, Lucineide dos Santos, 38, e quatro filhas. Há 18 anos, veio de Bonfim de Feira, distrito de Feira de Santana, para trabalhar no local.
Acostumados ao cultivo na terra, ao longo dos anos tentaram plantar na chácara, mas o relevo acidentado não permitiu o cultivo em hortas. “A gente plantava, mas a chuva levava tudo para baixo e perdíamos”, lembra Lucineide. Entre as plantações que vingaram, pés de banana, abacate, pitanga, jambo e caju. Eles também cuidam de sete cachorros e criam galinhas e periquitos.
SERVIÇOS EM BAIXA
Viver no local mais alto da capital vem acompanhado particularidades. O sinal de telefone de uma das operadoras é instável. A internet móvel não funciona bem. “Quando eu tinha o chip, me lembro de que só recebia o SMS dizendo que a pessoa tentou falar comigo, era estressante”, queixa-se, Laiane Ferreira, 18, uma das filhas de Evaldo.
O abastecimento de água encanada existe, mas a frequência varia. “Falta água. Já ficamos três semanas sem, mas temos um tanque grande que não nos deixa perceber”, justifica Evaldo. A mesma solução foi adotada na fábrica de biscoitos.
Para os moradores das casas, no entanto, ter uma bomba ou reservatório não é viável, devido aos custos do equipamento e da energia elétrica. A família de Thaís Barros, 22, sente os efeitos da irregularidade no fornecimento. “Todo dia a água vai embora mais ou menos umas 10h”, relata Thaís, que vive em uma das casas junto com três filhos e o marido, Reginaldo Cruz, 35 - que trabalha na fábrica de biscoito.
Em nota, a Embasa informou que o abastecimento é fornecido regularmente, mas que a presença de ligações irregulares ou de problemas na tubulação interna das casas interfere na distribuição.
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Fonte: Correio